No livro “Roberto Carlos em Detalhes”, a famosa biografia proibida do 
Rei, o autor Paulo César de Araújo descreve assim a visão dos artistas 
da Música Popular Brasileira sobre a Jovem Guarda no começo da explosão 
do movimento: “Na época, ainda não era aceitável que um 
cantor-compositor brasileiro pudesse fazer rock. Era algo considerado 
uma anomalia, e assim deveria ser tratado e corrigido. Portanto, a única
 solução possível para os roqueiros seria convertê-los à ‘música 
brasileira’.”
Foi isso que Chico Buarque e Geraldo Vandré tentaram fazer com Roberto 
Carlos em um dos episódios mais folclóricos – e menos lembrados – da 
rixa entre MPB e Jovem Guarda. Na edição de 10 de dezembro de 1966 da 
revista “Manchete”, Chico e Vandré entrevistaram Roberto, tentaram 
“curar” o Rei do seu vício em iê-iê-iê e recomendaram um tratamento à 
base de muita MPB. O título da matéria? “A Frente Ampla da Jovem Guarda”
 – uma referência ao manifesto político que naquele momento unia os 
antigos adversários políticos João Goulart, Juscelino Kubitschek e 
Carlos Lacerda contra a ditadura militar.
A entrevista é impagável. Mas, antes, um pouco de contexto. Em 1966, a 
popularidade de Roberto havia explodido com a música “Quero que Vá Tudo 
Vá pro Inferno” e com o programa “Jovem Guarda”. A MPB torceu o nariz e 
acusou Roberto, e a turma do iê-iê-iê como um todo, de fazer música 
alienígena e alienada, desvinculada dos ritmos nacionais e despreocupada
 com a ditadura militar.
Você não acha que o grande prestígio que tem, colocado a serviço da 
música popular brasileira, traria um grande benefício para ela? Geraldo 
Vandré, na revista “Manchete”, em 1966
Dois meses antes da entrevista, em outubro de 1966, o mítico II Festival
 de Música Popular Brasileira da TV Record tratou de juntar os três 
artistas no mesmo evento. Chico e Vandré foram os grandes vencedores com
 o famoso empate entre “A Banda” (composta pelo primeiro e defendida por
 ele ao lado de Nara Leão) e “Disparada” (composta pelo segundo e 
interpretada por Jair Rodrigues). Mas Roberto também se sobressaiu ao 
cantar bem à vontade duas músicas fora do repertório do iê-iê-iê: 
“Anoiteceu” (de Vinícius de Moraes e Francis Hime) e “Flor Maior” (Célio
 Borges).
Animado com os elogios de seus adversários da MPB, Roberto pensou em 
propor a sua gravadora CBS a ideia de gravar um LP com repertório de 
“música brasileira”. Logo depois do festival, ele comentou sobre o disco
 com Nara Leão, que se tornou a principal incentivadora do projeto. Foi a
 partir desses bastidores que a “Manchete” decidiu promover o encontro 
entre Chico, Vandré e Roberto. “Os dois estavam ali para completar o 
serviço de Nara. Ou seja, aliciar o ídolo da Jovem Guarda para as hostes
 da MPB. E não apenas para gravar um disco: a missão deles era atrair 
Roberto Carlos definitivamente para o time da música brasileira”, 
escreve Paulo César de Araújo.
A entrevista é repleta de metáforas sobre futebol – e, mais 
especificamente, sobre a ideia de mudar de time. Chico começa 
perguntando se Roberto iria mesmo gravar um disco com repertório 
“nacional”. O rei responde: “Acho que preciso ter muito cuidado, por já 
estar num gênero e de repente começar em outro. Não sei se teria de 
começar tudo de novo ou pegar a coisa pela metade. Seria assim um…” 
Antes que ele continuasse, Chico Buarque completa: “Um jogo?”. “É. Um 
jogo”, confirma Roberto. “E você não gosta de jogar?”, pergunta Chico. 
“Gosto”, responde Roberto. “Então, por que não entra no nosso jogo?”, 
provoca Vandré. “Estou na dúvida”, confessa o cantor.
Adiante na entrevista, Chico pergunta: “Você concorda com o empate de 
‘Disparada’ com ‘A Banda’?” E Roberto responde de primeira: “É o 
primeiro empate de dois caras que jogam no mesmo time.”  É a deixa para 
Vandré tentar novamente: “E nesse time tem camisa sobrando. É só você 
querer”.
Em outros momentos, Vandré deixa a metáfora de lado e tenta acuar 
Roberto com um ataque direto. “Você não acha que o grande prestígio que 
tem, sua grande popularidade, colocado a serviço da música popular 
brasileira, traria um grande benefício para ela?”. Roberto rebate: 
“Fazer música, para mim, embora viva disso, não é um negócio. A música é
 a música. Ela não deve ser feita para servir a outros interesses. Ao 
menos a minha, eu só faço quando tenho vontade e do jeito que tenho 
vontade.”
Sei que seu cachê até o Festival era perto de 500 contos, não é? Sei 
também que vai ganhar 3,5 milhões em Paranaguá. De modo que também estou
 em situação de perguntar: ‘é bom faturar, Chico Buarque?’ Roberto 
Carlos, rebatendo provocação de Chico sobre altos cachês
Aí começa o momento mais tenso da entrevista. Sem aceitar a ideia da 
música pela música, Vandré questiona se Roberto não estaria ganhando 
dinheiro demais com a profissão. “Não posso me queixar. Mas não componho
 para faturar. Se faturo, é outro problema”, responde o Rei. Chico tenta
 tirar onda de Roberto: “De qualquer forma, deve ser bom faturar como 
você”. E leva uma invertida do Rei: “Sei que seu cachê até o Festival 
era perto de 500 contos, não é, Chico? Sei também que vai ganhar três 
milhões e meio para cantar em Paranaguá. De modo que também estou em 
situação de perguntar: ‘é bom faturar, Chico Buarque?’ Chico acusa o 
golpe: “Bem, lá isso é. Essencial é que não”. Roberto vira o jogo de vez
 mirando em Vandré: “Seu nível de vida não é dos piores”. Vandré 
titubeia: “Minha vida não é das melhores, não. E tenho outra profissão. 
Fiscal da Sunab.”
O resto da entrevista é mais ameno. Mas os embaraçados Roberto e Chico 
não escondem seu desconforto e a vontade de chegar ao fim. Apenas Vandré
 parece à vontade no encontro. Ao final, Chico pergunta: “Você vai ou 
não vai gravar música brasileira? Pediu ou não pediu a Nara para te 
ajudar a escolher o repertório?” E Roberto responde: “Pedi. Nós 
conversamos a respeito. Então eu falei: ‘Nara, já pensou? Eu gravar uma 
música do Chico?’ E ela respondeu: ‘Que é que tem isso demais? Grava!’ E
 eu já falei com a gravadora para lançar um disco meu totalmente 
dedicado à música brasileira”. Vandré se entusiasma: “Ótimo!” Chico 
entrega os pontos: “Acho que chega, não?” E Roberto se alivia: “Graças a
 Deus.”
No final das contas, o projeto do disco de MPB não vingou, não por culpa
 de Roberto, mas de seu produtor Evandro Ribeiro. Segundo Paulo César de
 Araújo, o gerente-geral da CBS “dizia para Roberto não dar ouvidos 
àquele pessoal da música brasileira, que tinha era inveja e receio de 
seu sucesso, e queria Roberto Carlos ao seu lado para mais facilmente 
tentar anulá-lo”.
Reprodução
Em trecho de entrevista para o documentário “Uma Noite em 67”, realizada
 em 2009 e não incluída no filme, Chico diz se lembrar da matéria da 
“Manchete” e tenta se justificar dando o contexto da época: “Falavam que
 o Roberto fazia música estrangeira. E ele tinha começado como cantor de
 bossa nova. Existia uma discriminação aí. Eu sempre gostei do Roberto e
 das músicas dele. Não era a música que eu fazia, era outro tipo, mas 
isso não importava, não era uma questão ideológica, nunca levei a esse 
ponto.”
Já Roberto, em entrevista ao mesmo documentário (do qual o autor deste 
texto é um dos diretores), tenta colocar panos quentes na rivalidade 
entre Jovem Guarda e MPB. “A gente via isso numa boa. Quando a gente 
ouvia alguma coisa a respeito, dizia: ‘Puxa vida, mas o povo gosta disso
 que a gente está fazendo, acho que a gente não tem que se preocupar 
muito com isso, não'”. Mas, em 1966, a visão de Roberto era bem 
diferente, como mostra uma das raras declarações bombásticas do Rei 
resgatada por Paulo César de Araújo: “Fizeram um cerco em torno de mim 
que às vezes me angustia! Muitos falam mal de mim. Tenho muita mágoa do 
pessoal de música brasileira.” Mas Roberto abre uma exceção: “Um dos 
poucos de quem não tenho mágoa é do Chico Buarque de Hollanda, que me 
parece um ótimo sujeito”.
Sete meses depois da entrevista na “Manchete”, em 17 de julho de 1967, a
 rixa entre MPB e Jovem Guarda chegaria a seu momento mais explícito, na
 emblemática “passeata contra a guitarra elétrica”, com a participação 
de, entre outros, Geraldo Vandré, Elis Regina e Gilberto Gil. No 
festival da Record daquele mesmo ano, Gil cantaria acompanhado de 
guitarra em “Domingo no Parque”, assim como Caetano Veloso em “Alegria, 
Alegria”. Foi o suficiente para Evandro Ribeiro, produtor de Rei, 
comentar ironicamente: “Está vendo, Roberto? Eles queriam que você 
aderisse à música brasileira. Agora estão aí aderindo ao iê-iê-iê e se 
dando bem”.
Fonte: Bol
     
    
  

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